. . . Universidade Federal de Minas Gerais.
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O corpo humano adulto tem entre 1 a 2 quilogramas de cálcio, dos quais 90% estão localizados no esqueleto e dentes, na forma de hidroxiapatita. Cerca de 500 mg de cálcio são mobilizados dos ossos pela osteólise osteocítica e redepositados no novo tecido osteóide aposto a cada dia. Em uma dieta normal ingere-se de 600 a 1000 mg de cálcio por dia, a maior parte sendo excretado pelo tubo intestinal (cerca de 760 mg/dia), pelos rins (100 a 300 mg/dia, proporcional à natriurese) e pela sudorese.
A absorção do cálcio se dá no duodeno por transporte ativo dependente de proteínas, e é inibida na deficiência de vitamina D, na uremia, e no excesso de ácidos graxos. A calcemia normal fica entre 8.8 a 10.4 mg% (2.2 a 2.6 mM). A manutenção desses níveis adequados de cálcio é parte importante no tratamento de diversas enfermidades e merece a atenção de vários profissionais ligados à saúde. No plasma, o cálcio está presente sob a forma de íons livres - importantes na regulação da coagulabilidade sangüínea e da irritabilidade neuromuscular (a hipocalcemia causa tetania); ligados a proteínas (50% da calcemia) e em complexos difusíveis.
Quando sais (fosfatos, carbonatos e citratos) de cálcio
(e também de ferro, magnésio, e outros) são depositados
em tecidos frouxos não osteóides, em órgãos
parenquimatosos, na parede dos vasos, e em pleuras ou meninges, enrigecendo-os,
dá-se o nome de calcificações
ou mineralizações - patológicas
ou heterotópicas (Fig. 5.1).
Apesar de se constituírem em um capítulo à parte dentro da patologia geral, as calcificações patológicas ocorrem em concomitância com vários processos gerais, como as necroses e degenerações e podem estar presentes em virtualmente qualquer lesão crônica.
Convém salientar que apesar de essencial, o cálcio é um elemento tóxico para as células. Por essa razão existem mecanismos diversos e complexos para manter um elevado gradiente de concentração com cálcio intracitoplasmático rigorosamente baixo. Isto permite o seu papel como segundo mensageiro na tradução dos sinais participando de importantes processos como ativação, secreção, contração, exaustão e mesmo a morte celular. Sem dúvida, o cálcio pode ser considerado como a "adrenalina da célula"...
A deposição patológica de minerais e sais de cálcio pode ocorrer nos tecidos em duas formas: Na calcificação distrófica ou local - que afeta tecidos lesados e não depende dos níveis plasmáticos de cálcio e fósforo; e na calcificação metastática ou geral ou discrásica ou gota cálcica - onde a hipercalcemia resulta na precipitação dos sais em tecidos normais.
A distinção entre os dois tipos de calcificações suscita discussões e muitas vezes é considerada artificial, já que o aspecto morfofisiológico final é similar e que a deposição de cálcio nos tecidos sadios com alguma freqüência determina lesão nestes. Além disso, a hipercalcemia pode também favorecer a deposição de cálcio nos tecidos lesados, intensificando a calcificação distrófica. Entretanto, a presença de sinais de lesão prévia aliados à maior intensidade da deposição calcárea sugerem calcificação distrófica. A distribuição e localização dos depósitos também podem ser de valor na diferenciação entre calcificação distrófica e metastática.
Por vezes o termo "calcinose" tem sido utilizado como sinônimo de calcificação metastática extensa. Pode também designar a calcificação da derme e do tecido subcutâneo ("calcinose cutis"), independente da causa.
A calcificação distrófica é mais freqüente que a metastática e ocorre de maneira mais localizada nos tecidos conjuntivos fibrosos hialinizados em lenta e prolongada degeneração, como na parede de vasos esclerosados (ex: placas ateromatosas antigas e esclerose medial de Monckeberg nas artérias uterinas de mulheres idosas - Fig. 5.2), em tendões, em válvulas cardíacas, e em alguns tumores (ex: leiomiomas uterinos, meningiomas, carcinomas mamários e papilares da tireóide e do ovário).
A calcificação distrófica ocorre
também nas áreas de necroses antigas e não reabsorvidas,
como na linfadenite caseosa da tuberculose (Fig. 5.3), nos infartos antigos,
ao redor de parasitas e larvas mortas, na necrose enzimática das
gorduras da pancreatite, nos abscessos crônicos de difícil
resolução e em trombos venosos crônicos (flebólitos).
Em órgãos tubulares (ductos e vesículas), a calcificação
pode envolver núcleos orgânicos de debris e células
descamadas permitindo a formação de cálculos.
Os cristais de fosfato de cálcio depositados nas calcificações patológicas são similares à hidroxiapatita do osso. A deposição ocorre em duas etapas: iniciação (ou nucleação) e proliferação (ou crescimento). A nucleação é a acomodação dos hexágonos de hidroxiapatita na intimidade da molécula de colágeno ou de osteonectina. A fase intracelular da nucleação ocorre nas mitocôndrias de células mortas ou lesadas. A fase extracelular ocorre em estruturas denominadas "vesículas da matriz", - organelas extracelulares que têm composição e atividade enzimática distinta das membranas plasmáticas que lhes deram origem. Possuem 25 a 250 nm de diâmetro e são originadas de células degeneradas ou necróticas, na vizinhança da área de calcificação. Fosfolipídios ácidos presentes nessas vesículas, principalmente a fosfatidilserina, agem como captadores e precipitadores de cálcio. Além disso, fosfatases também presentes nessas vesículas parecem reprimir os mecanismos inibitórios da precipitação dos sais, representados pelos pirofosfatos e proteoglicanos. A proteólise destes aumenta a formação da hidroxiapatita por permitir maior mobilidade de íons, facilitando a saturação dos fluidos extracelulares. A etapa de proliferação do núcleo é a progressão autocatalítica da deposição dos sais e é influenciada por múltiplos fatores extracelulares, tais como: cálcio, fósforo e fosfatase alcalina, análogos da osteocalcina, osteopontina, pH do tecido, vitamina D, balanço hormonal, suprimento sangüíneo e solução de continuidade de tecidos moles (Fig. 5.4).
A calcificação metastática é mais disseminada no organismo que a distrófica e decorre da absorção abundante de cálcio no tubo gastro-intestinal por intoxicação com vitamina D; e da mobilização excessiva de cálcio dos ossos, consequência de imobilização prolongada, de osteólise (mielomas ou metástases ósseas); e do hiperparatireoidismo primário ou secundário (renal, nutricional ou por síndrome para-neoplásica).
A Insuficiência renal crônica provoca retenção de fosfatos (hiperfosfatemia por hipofosfatúria) o que determinará maior secreção de paratôrmonio no sentido de se equilibrar a relação cálcio-fósforo no sangue. Assim, a hiperfosfatemia induz a elevação da calcemia por excessiva mobilização óssea, às vezes ultrapassando o limiar de solubilidade do cálcio e fósforo no plasma, permitindo a sua precipitação nos tecidos (Fig. 5.5).
Em cerca de 5% dos carcinomas, principalmente no mamário e pulmonar, pode ocorrer hipercalcemia, seja pela secreção de proteínas que mimetizam a ação do paratôrmonio (nas "síndromes para-neoplásicas") ou pela osteólise nas metástases ósseas. A maioria dos pacientes nessas condições, no entanto, não sobrevivem a tempo de ocorrer calcificação metastática em níveis significativos.
Em termos de patologia comparada merece ainda ser citado o hiperparatireoidismo secundário nutricional, que afeta principalmente animais carnívoros domésticos e de zoológico, e herbívoros alimentados com excesso de grãos. A dieta exclusiva com carne e vísceras e a ausência de ossos ou de suplementos de cálcio nos carnívoros, assim como o excesso de grãos e a deficiência de gramíneas na dieta dos herbívoros, com freqüência acarreta hiperfosfatemia, que determinará maior secreção de paratôrmonio no sentido de se equilibrar a relação cálcio-fósforo no sangue. Assim, ocorrerá hiperparatireoidismo com excessiva mobilização óssea e saturação dos níveis plasmáticos de cálcio e fósforo, permitindo a precipitação de sais de cálcio nos tecidos.
Em várias partes do mundo, herbívoros que utilizam pastagens com Solanum malacoxylon e Cestrum diurnum mostram deposição de sais de cálcio em vários tecidos moles, incluindo a aorta, os rins, tendões, ligamentos articulares e coração. O princípio ativo dessas plantas é semelhante ao da forma mais ativa da vitamina D, o 1,25- diidroxicolecalciferol. O excesso desse composto estimula a síntese de proteínas captadoras de cálcio e a absorção intestinal de cálcio, gerando hipercalcemia e possibilitando a calcificação metastática.
Enquanto a Calcificação distrófica ocorre mais localizadamente, a Calcificação metastática atinge principalmente o estroma dos rins e pulmões, o estômago, o coração, a parede das artérias e a córnea. Aparentemente o pH alcalino ao longo das membranas basais dos vasos desses órgãos favorecem a precipitação dos sais.
A área calcificada, quando macroscopicamente visível, mostra nódulos parenquimatosos freqüentemente palpáveis, de consistência firme, pétrea ou arenosa, resistentes ao corte, com coloração brancacenta ou acinzentada. À tentativa de secção, a faca "range" ao corte. São radio-opacos ao raio X.
À microscopia óptica verifica-se acidofilia inicial, com aparecimento de grumos basófilos irregulares (muitas vezes confundidos com bactérias) que confluem ou crescem formando grânulos maiores, às vezes fragmentados devido à microtomia. Pode ocorrer também a formação de lamelas de deposição concêntricas caracterizando os chamados "corpos psamomatosos". A coloração é azul escuro ou roxo, nas colorações de HE, vermelho-escarlate à alizarina Vermelha S de Langeron (mais específica para cálcio) e negro à coloração de Van Kossa (impregnação com nitrato de prata, que detecta fosfatos, inclusive o de cálcio).
À microscopia eletrônica o cálcio é melhor evidenciado utilizando-se o piroantimonato de potássio, que produz precipitados eletrodensos com o cálcio, tornando-o facilmente evidenciável ao nível ultraestrutural. Sem dúvida, tais precipitados inicialmente são vistos predominantemente nas mitocôndrias e nas vesículas da matriz das membranas.
As conseqüências da calcificação dependerão do local e da intensidade da deposição dos sais. Geralmente o depósito de cálcio é considerado inócuo e inerte, apesar de permanente e irreversível.
A calcificação distrófica geralmente não tem grandes efeitos deletérios sobre o organismo, exceto quando afetando válvulas cardíacas (causando estenose e insuficiência valvular e cardíaca), complicando ateroscleroses ou potenciando a ocorrência de litíases. Quando ocorre nos granulomas tuberculosos, nos abscessos crônicos e nos aneurismas verminóticos, a calcificação distrófica pode ser considerada benéfica, uma vez que encarcera o agente agressor.
Em geral, a calcificação metastática não causa disfunção clínica significativa, sendo a condição hipercalcêmica mais importante que a calcificação em si. Entretanto, pode ocorrer deficiência respiratória no caso de envolvimento intenso dos pulmões, e insuficiência renal nos depósitos maciços nos rins (nefrocalcinose).
A metaplasia óssea ou ossificação heterotópica é uma conseqüência comum das calcificações, com a metaplasia dos fibroblastos e das células mesenquimais indiferenciadas em osteoblastos e a formação de tecido osteóide.
Dá-se o nome de cálculos (do latim "calculus" - pedra de contar) ou concreções endógenas (do latim "concretione" - material endurecido) ou ainda litíase (do grego "lithos"- pedra) às massas esferoidais, ovóides ou facetadas, sólidas, concretas e compactas, de consistência argilosa a pétrea, que se formam no interior de órgãos ocos (bexiga, vesícula biliar), cavidades naturais do organismo (peritoneal, vaginal do testículo), condutos naturais (ureter, colédoco, ducto pancreático ou salivar) e mesmo no interior de vasos.
Este material se deposita por precipitações sucessivas de sais inorgânicos ao redor de um núcleo orgânico, formado por agregados de células descamadas, grumos bacterianos, massas de fibrina ou de mucina, corpos estranhos, etc - com estrutura radiada ou mesmo em estratificações sucessivas formando camadas concêntricas.
Como norma geral de nomenclatura das concreções endógenas, utiliza-se um termo designativo do local de formação ou origem, acrescido do sufixo "litíase" para denominar a ocorrência do problema, e do sufixo "lito" para denominar o cálculo. Como exemplos mais freqüentes citam-se os biliares (colelitíase e colélitos), os urinários (urolitíase e urólitos), os bronquiais (bronquiolitíase e bronquiólitos), os salivares (sialolitíase e sialólitos) e os vasculares - formados a partir de trombos (flebólitos e arteriólitos). Menos freqüentes são os cálculos prepuciais, devido à mineralização do esmegma no sulco balanoprepucial nos casos de fimose severa; os corpos psamomatosos dos plexos coróides; os rinolitos da cavidade nasal e os cálculos amigdalianos.
Cálculos microscópicos ou microconcreções são também chamadas de corpos amilóides ou amiláceos ("Corpora amylacea"). Estes são geralmente concêntricos e hialinos sendo freqüentes nos ácinos prostáticos e nos alvéolos mamários.
Em patologia comparada merecem citação as concreções exógenas ou "bezoários" (do persa "pàdzähr" e do árabe "bazahr", que significa "portador de felicidade" ou "anti-veneno" - o que justificava o seu uso como talismã na idade média). Tratam-se de massas esféricas, ovóides ou ainda facetadas, que se formam no tubo gastro intestinal, constituídos de material exógeno (pêlos ingeridos ou fibras vegetais não digeridas). Dois tipos são descritos:
As piloconcreções ou pilobezoários ou ainda egagrópilos (de "Hircus aegagrus" - cabra asiática cujos pilobezoários eram importantes amuletos para os tibetanos) são massas leves (densidade = 0.7 g/cm3), lisas ou hirsutas, formadas pelo enovelamento dos pêlos ingeridos. São mais freqüentes em bovinos, camelos, cães e suínos. Podem estar associados com dermatopatias, desnutrição e/ou verminose (com parorexia ou perversão do apetite) ou com hábitos sazonais. Geralmente são inócuos, mas podem causar obstruções, rupturas e peritonite quando se tornam muito volumosos.
As fitoconcreções ou fitobezoários são massas mais leves que os enterólitos e mais pesados que as piloconcreções, podendo ser aveludados, esverdeados e, às vezes, cerebriformes. São mais freqüentemente encontrados no cólon de eqüinos alimentados com aveia e nos pré-estômagos de ruminantes.
Para concluir, merecem ainda destaque as chamadas pseudoconcreções ou "fecálitos" ou "cíbalos" ou ainda "fecalomas". Trata-se de material fecal dessecado, endurecido, conseqüência de constipação crônica. Não deve ser confundida com os verdadeiros enterólitos, que são mais raros.
Legendas das Ilustrações:
Fig. 5.1. Metabolização do Cálcio no organismo.
Fig. 5.2. Esclerose Medial de Monckeberg, com placa de calcificação distrófica na túnica média de artérias uterinas.
Fig. 5.3. Linfadenite da tuberculose, com grumos de calcificação distrófica em meio à necrose caseosa.
Fig. 5.4. Mecanismos da deposição dos sais de cálcio.
Fig. 5.5. Os hiperparatireoidismos e a hipervitaminose D na calcificação metastática.
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