Ezequiel Rubinstein
Márcio A. Cardoso
A
região inguinal é uma das regiões corpóreas mais difíceis de serem
descritas anatomicamente e sobre a qual mais controvérsias existem quando se
comparam textos diversos. Algumas das razões que explicam este fato são a
utilização pelos autores de uma nomenclatura confusa, com o emprego de
numerosos epônimos que em nada esclarecem a topografia da região, a
descrição de uma mesma estrutura com nomes diferentes e a existência de
descrições pouco didáticas e de ilustrações pouco esclarecedoras.
Sem pretender resolver todas estas dificuldades, a descrição que se segue é uma tentativa de dar uma visão objetiva da região inguinal.
Limites
Seus
limites são, classicamente, o ligamento inguinal, látero-inferiormente, a
linha vertical traçada do ponto médio da clavícula ao ponto médio do
ligamento inguinal, medialmente e a linha que tangencia os tubérculos das
cristas ilíacas, superiormente.
Contudo,
neste tipo de divisão os limites da região inguinal não correspondem à
realidade, deixando fora dela estruturas que lhe são intimamente vinculadas
morfológica e funcionalmente. Tal problema pode ser resolvido pela alteração
do limite medial, traçando-se do ponto de encontro entre a linha hemiclavicular
e o plano transtubercular uma linha até o tubérculo púbico. Esta
delimitação é a comumente aceita atualmente para a região inguinal
Pele
e tela subcutânea
A
pele da região inguinal é delgada, flexível e
móvel. Glabra lateralmente, torna-se pilosa medialmente
A
tela subcutânea, como no restante da parede ântero-lateral do abdome,
apresenta-se com duas camadas, uma superficial e adiposa, outra profunda e
conjuntiva, as camadas areolar e laminar da tela, respectivamente.
Músculos
ântero-laterais
O
músculo oblíquo externo, representado na região inguinal, essencialmente, por
sua aponeurose de inserção, apresenta um triplo comportamento:
suas fibras mais inferiores se
prendem à espinha ilíaca ântero-superior e ao tubérculo púbico,
constituindo o ligamento inguinal. Este tem a forma de uma calha, com a
concavidade voltada para a profundidade. Nesta concavidade os mm. oblíquo
interno e transverso têm suas origens inguinais. A borda livre, profunda, do
ligamento inguinal repousa sobre a fáscia transversal. Da porção mais medial
do ligamento inguinal parte uma expansão em direção póstero-superior, que se
prende na linha pectínea do púbis: é o ligamento lacunar, cuja borda livre,
semilunar, forma o limite medial do anel femoral. Ao atingir a linha pectínea,
o ligamento lacunar se continua com um espessamento do periósteo denominado
ligamento pectíneo.
suas fibras mais superiores
tomam parte na formação da bainha do m. reto do abdome.
as fibras situadas entre as
dos dois grupos anteriores divergem: as mais laterais se prendem ao tubérculo
púbico e as mais mediais à sínfise púbica, delimitando entre elas um espaço
aproximadamente triangular, o anel inguinal superficial. As fibras mais laterais
formam o pilar lateral do anel superficial e são contínuas com as que vão
participar da formação do ligamento inguinal. As fibras mais mediais formam o
pilar medial do anel superficial e são contínuas com as que participam da
bainha do m. reto do abdome.
Os
fascículos do m. oblíquo interno que se originam do ligamento inguinal o fazem
da metade ou dos dois terços laterais deste e se direcionam medialmente,
descrevendo um arco de concavidade voltada inferiormente, para tomarem parte,
representados pela aponeurose de inserção, na formação da bainha do m. reto
do abdome. As fibras aponeuróticas mais inferiores se prendem na crista púbica
e na linha pectínea. Algumas das fibras musculares mais próximas da borda
livre, inferior, se separam do m. oblíquo interno e se direcionam para o
escroto, constituindo o m. cremaster.
Os
fascículos do m. transverso do abdome que se originam do ligamento inguinal o
fazem da metade ou do terço lateral deste e têm um comportamento similar aos
do m. oblíquo interno, exceto quanto a formação do m. cremaster, para o qual
raramente contribuem.
As
porções mais inferiores das aponeuroses dos mm. oblíquo interno e transverso,
presas a crista púbica e a linha pectínea, podem se fundir, formando o tendão
conjunto. Ao contrário do que o nome possa sugerir, poucas vezes a
participação das aponeuroses dos dois músculos é aproximadamente
equivalente, predominando, na maior parte dos casos, a aponeurose do transverso.
Fáscia
transversal
A
fáscia transversal é a porção ântero-lateral da fáscia endoabdominal. Esta
é uma lâmina conjuntiva, situada entre o plano muscular e o tecido
extraperitoneal, que conforme a região abdominal que se situa recebe nomes
diferentes, relacionados com os músculos mais próximos. Assim, superiormente
é a fáscia diafragmática; antero-lateralmente é a fáscia transversal;
láteroposteriormente é a fáscia ilíaca e posteriormente é a fáscia do
psoas. Inferiormente é a fáscia parietal da pelve. Muito se discute se a
fáscia endoabdominal é uma estrutura independente ou uma “colcha de retalhos”,
formada pela união das fáscias musculares que revestem a face interna dos
músculos das paredes abdominais. Na verdade a fáscia endoabdominal pode ser
considerada a somatória de ambos os conceitos: em algumas regiões ela é
formada pelas fáscias dos músculos e em outras ela possui nítida
individualidade, como em parte da região inguinal.
A
fáscia transversal, cerca de 1 a 1,5 cm acima da metade do ligamento inguinal
apresenta uma evaginação, a fáscia espermática interna. A boca desta
evaginação é o anel inguinal profundo. Dois espessamentos fasciais são
encontrados na fáscia transversal:
ligamento interfoveolar que, a
partir da borda medial do anel inguinal profundo, dirige-se tanto superior
quanto inferiormente. Inferiormente se prende ao ligamento lacunar e à linha
pectínea, enquanto superiormente vai até à linha arqueada, seguindo um
trajeto superior e medial, estando em correspondência com o trajeto dos vasos
epigástricos inferiores, situados no tecido extraperitoneal. As vezes, fibras
do m. transverso se separam deste e acompanham o ligamento interfoveolar,
formando então o m. interfoveolar.
ligamento iliopúbico, que
corre paralelo e próximo a borda livre, profunda, do ligamento inguinal, indo
do ligamento lacunar até a espinha ilíaca ântero-superior.
Tecido
extraperitoneal
No
tecido extraperitoneal inguinal, encontram-se os vasos epigástricos inferiores,
que se dirigem superior e medialmente, em direção a cicatriz umbilical (sem
contudo, chegarem a ela). Também aí se encontra o ducto deferente, o qual
posiciona-se em gancho ao redor da borda lateral da a. epigástrica inferior,
para em seguida penetrar pelo anel inguinal profundo.
Canal
inguinal
O
canal inguinal é uma passagem músculo-aponeurótica, de trajeto oblíquo, de
posterior para anterior, de lateral para medial e de superior para inferior,
através das paredes da região inguinal, indo do anel inguinal profundo ao anel
inguinal superficial, com cerca de 4 cm de extensão, no adulto. Na criança
recém-nascida é mais curto, pois nesta os anéis inguinais estão praticamente
no mesmo plano ântero-posterior. Como conseqüência do crescimento, o anel
profundo se lateraliza e o canal assume seu trajeto e dimensões definitivas.
Podem
ser descritas no canal quatro paredes:
a parede anterior é a
aponeurose de inserção do m. oblíquo externo.
a parede posterior é a
fáscia transversal, reforçada lateralmente pelo ligamento interfoveolar e
medialmente pelo tendão conjunto, deixando uma região intermédia na qual só
a fáscia transversal constitui a parede posterior. Esta área potencialmente
fraca é denominada de trígono herniógeno e seus limites são o ligamento iliopúbico
(ou a borda profunda do ligamento inguinal) inferiormente, medialmente o tendão
conjunto e lateralmente o ligamento interfoveolar, que corresponde no plano da
fáscia transversal ao trajeto dos vasos epigástricos inferiores no tecido extraperitoneal,
derivando daí o fato de alguns autores citarem os vasos epigástricos
inferiores como o limite lateral do trígono herniógeno.
a parede inferior ou assoalho
é formada pela calha do ligamento inguinal e pelo ligamento lacunar.
a
parede superior ou teto é
formada pelas bordas arqueadas dos mm. oblíquo interno e transverso.
Além
das paredes o canal apresenta duas aberturas que são os anéis inguinais
superficial e profundo.
No
sexo masculino o canal contém o funículo espermático, o n. ilioinguinal e o
ramo genital do n. genitofemoral. O funículo espermático está constituído
pelo ducto deferente, pela a. e v. deferenciais, pela a. testicular, pelo plexo
venoso pampiniforme, pelos linfáticos e pelos nervos autônomos do testículo.
No
sexo feminino o canal acomoda o ligamento redondo do útero, a a. e v. do
ligamento redondo, o n. ilioinguinal e o ramo genital do n. genitofemoral.
A
existência do canal inguinal é uma necessidade biológica, constituindo o
trajeto pelo qual os testículos, que se formam na parede posterior do abdome,
conseguem chegar à bolsa escrotal. Os ovários também se formam na mesma
região e também descem, mas param na pelve, o que não impede a ocorrência
dos mesmos fenômenos relacionados ao canal inguinal que acontecem com o sexo
masculino.
Neste,
o descenso testicular é acompanhado pela formação de uma evaginação do
peritônio, o processo vaginal, que acompanha o testículo até ao escroto. Logo
após o nascimento o processo vaginal oblitera-se, transformando-se em um
cordão fibroso. Somente sua porção adjacente ao testículo não se oblitera e
passa a constituir a túnica vaginal do testículo, que o envolve parcialmente.
No
sexo feminino, o processo vaginal que se estendeu até o grande lábio
correspondente se oblitera totalmente.
Em
ambos os sexos o conteúdo do canal está envolvido por fáscias derivadas dos
planos que atravessa. Contudo estas fáscias são mais facilmente identificadas
no sexo masculino e são as seguintes:
fáscia espermática interna,
derivada da fáscia transversal
fáscia cremastérica, formada
pelo m. cremaster e sua fáscia. No sexo feminino, geralmente, o que se encontra
são feixes musculares isolados, separados por tecido conjuntivo.
fáscia espermática externa,
derivada da fáscia do m. oblíquo externo.
Estes
envoltórios fasciais, no sexo masculino se estendem até o escroto e passam a
fazer parte de sua parede, enquanto no sexo feminino terminam nos grandes
lábios.
Mecanismos
de proteção
O canal inguinal é uma região potencialmente fraca na porção inferior da parede anterior do abdome. Diversos mecanismos existem para reduzir esta fraqueza e podem ser divididos em mecanismos passivos e ativos.
Os
mecanismos passivos são:
a não sobreposição dos anéis
inguinais, que só não ocorre no recém-nascido, onde o canal inguinal
tem trajeto póstero-anterior retilíneo, com sobreposição dos anéis
inguinais.
a presença do tendão
conjunto reforçando a porção medial da parede posterior.
quando da ocorrência de
grandes aumentos da pressão abdominal, como na defecação, o indivíduo tende
naturalmente a adotar uma posição de proteção, na qual as articulações
coxo-femorais são fletidas e as faces anteriores das coxas trazidas de encontro
à parede abdominal (posição de cócoras).
o vértice do anel inguinal
superficial é reforçado por fibras dispostas em ângulo reto como os da
aponeurose do m. obliquo externo, as fibras intercrurais, que evitam o
esgarçamento e conseqüente ampliação do anel superficial.
Embora
úteis, os mecanismos passivos perdem importância diante dos mecanismos
ativos.O principal mecanismo ativo de proteção do canal inguinal é a
contração dos músculos ântero-laterais do abdome durante os esforços que
aumentam a pressão abdominal. As fibras arqueadas, inferiores do oblíquo
interno e do transverso se retificam pela contração, abaixando-se em direção
ao ligamento inguinal e comprimindo o conteúdo do canal, o qual fica
virtualmente fechado. Além disto, pelo menos nos casos em que o ligamento
interfoveolar possui fibras musculares, ele pode agir como um obturador do anel
profundo, constituindo assim outro mecanismo ativo.
Hérnias
inguinais
No
seu conceito mais amplo, hérnia é a protusão de qualquer estrutura, víscera
ou órgão, através de uma abertura, congênita ou adquirida. No caso
específico da região inguinal, é a protusão do conteúdo abdominal ou
através do anel inguinal profundo (hérnia indireta) ou através da parede
posterior do canal inguinal (hérnia direta).
Para
que ocorra a hérnia inguinal indireta é essencial a persistência total ou
parcial do processo vaginal, de tal forma que exista uma comunicação com a
cavidade peritoneal. Esta persistência do processo vaginal, embora
obrigatória, não implica automaticamente na ocorrência da hérnia, sendo
somente uma condição predisponente. Para que a hérnia passe de uma situação
potencial, que é congênita, a uma situação real, são necessários outros
fatores, em especial os que comprometam os mecanismos de defesa acima referidos,
em especial um aumento persistente da pressão endoabdominal.
Nos
casos de hérnia indireta, o conteúdo abdominal é empurrado através do anel
inguinal profundo e do canal inguinal, podendo chegar até a bolsa escrotal,
dependendo da extensão do processo vaginal permeável. Assim, ela está contida
no funículo espermático, sendo necessário, para atingi-la durante uma
cirurgia, incisar os envoltórios do funículo.
A
hérnia inguinal indireta é o tipo mais freqüente de hérnia inguinal (75%),
sendo mais comum no sexo masculino que no feminino, o que é explicado por ser o
canal inguinal feminino mais estreito e só alojar o ligamento redondo do
útero.
A hérnia inguinal direta é adquirida e decorre de uma parede posterior do canal inguinal enfraquecida. Neste tipo de hérnia, a fáscia transversal, o tecido extraperitoneal e o peritônio são empurrados à frente do conteúdo abdominal herniário no canal inguinal, não estando contida no funículo espermático, o que não impede que ela saia pelo anel inguinal superficial e até chegue ao escroto, embora tal só ocorra raramente. O local preferencial de sua ocorrência é na região do trígono herniógeno (ver acima), enquanto a hérnia indireta ocorre lateralmente a este trígono.